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Como foi o primeiro ano de Lula 3 na economia — e quais são os desafios para 2024
Governo aprovou reforma tributária histórica e conseguiu cumprir as promessas de elevar o salário mínimo e o Bolsa Família, mas ainda enfrenta déficit expressivo nas contas públicas e desconfiança sobre o arcabouço fiscal.
A agenda econômica deu a tônica do primeiro ano do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e deve ser o foco deste ano também.
Tanto que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, atrasou o recesso de réveillon para anunciar, a três dias do fim de 2023, um novo pacote de medidas econômicas para tentar zerar o déficit das contas públicas federais.
Ao longo do ano, coube a Haddad criar um plano para desatar uma bomba nas contas públicas, enquanto equilibrava a pressão de membros do PT por uma aceleração nos investimentos. Entre vitórias e deslizes, ainda restam muitas dúvidas e desafios para 2024.
Os destaques até aqui:
- foi criada uma nova regra fiscal que reduziu o risco de endividamento descontrolado do país — e também amenizou as tensões do mercado financeiro;
- foi aprovada uma reforma tributária histórica, discutida há mais de 30 anos no Congresso;
- foram cumpridas as promessas de campanha de conceder aumento real ao salário mínimo e de reajuste do Bolsa Família para R$ 600;
- foram mantidas a meta de inflação e a autonomia do Banco Central, que ajudaram a manter comportadas as expectativas e deram segurança ao BC para iniciar o ciclo de corte nos juros;
- foram criadas medidas de aumento da arrecadação, em busca de perseguir a meta de zerar o déficit nas contas em 2024;
- houve aversão à discussão sobre revisão e corte de gastos, o que afasta a possibilidade de cumprir o déficit zero e amplia a perspectiva de endividamento do país;
- foram priorizadas a criação de novas taxas, a correção de distorções tributárias e a retirada de benefícios fiscais;
- não há clareza sobre um plano B para perseguir o superávit fiscal, com medidas que dependem de um Congresso avesso ao aumento de impostos;
- resultados de PIB surpreenderam com suporte de incentivos fiscais (como os benefícios sociais), mas a atividade iniciou desaceleração junto com outras economias globais.
O g1 ouviu economistas e cientistas políticos para entender o balanço final da economia no primeiro ano de Lula 3, e quais devem ser as prioridades do governo para 2024.
Abaixo, será possível entender os avanços e os entraves em grandes temas da economia. Serão tratados os seguintes temas:
PIB, inflação e juros: as surpresas positivas
Os resultados finais da macroeconomia ainda não saíram, mas já estão muito distantes do primeiro boletim Focus de 2023. O relatório do Banco Central analisa, semana a semana, as projeções do mercado financeiro para o fim do ano.
Em janeiro do ano passado, os analistas apostavam em um Produto Interno Bruto (PIB) na casa dos 0,8%. A inflação prevista era de 5,31%. Os juros, de 12,25% ao ano.
O primeiro Focus de 2024 espera alta de 2,92% para o PIB e inflação final de 4,46%, dentro da meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). A taxa básica de juros já terminou o ano em 11,75% ao ano, meio ponto percentual abaixo do previsto.
Os economistas têm debatido que talvez não estejamos captando algumas mudanças estruturais nos últimos anos. Com as reformas que foram feitas de 2016 para cá, ficou mais difícil medir a nova capacidade de crescimento da economia brasileira. — Alessandra Ribeiro, economista e sócia da Tendências Consultoria
É bem verdade que 2023 foi “abençoado” com uma supersafra agrícola, que deve crescer 16% no ano e puxar atividades correlatas em outros setores — caso de transportes, indústria extrativa etc.
A safra também ajudou a reduzir os preços dos alimentos, que conduziram a desinflação deste ano. O grupo de Alimentação e bebidas, que costuma representar 20% do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), teve deflação em quatro meses seguidos (e só recentemente voltou a subir).
A queda do preço de commodities neste ano também ajudou a desinflacionar a economia, reduzindo a pressão de combustíveis na inflação já no segundo semestre.
Foi o cenário mais comportado, com a percepção que a demanda vinha enfraquecendo ao longo do ano e com uma saída proposta para a crise fiscal (saiba mais abaixo) que o Banco Central pode iniciar os cortes na taxa básica de juros, a Selic, com mais velocidade do que o mercado previa.
Em vez de cortes de 0,25 p.p., foram realizados cortes de 0,5 p.p. em cada reunião. E, na virada do ano, discute-se (com cautela) a possibilidade de acelerar o passo neste ano.
Crise fiscal e a aprovação do arcabouço
Por mais que a economia brasileira tenha surpreendido em 2023, não há especialista que não faça a ressalva da situação das contas públicas. O resultado primário no ano — diferença entre arrecadação e gastos — deve ficar negativo, na casa dos R$ 125 bilhões.
Já em 2022, ninguém esperava que o país pudesse ter superávit no ano que termina. O governo Jair Bolsonaro conseguiu fechar seu último ano no azul com fatores que sairiam da conta para o ano seguinte, independentemente de quem fosse eleito presidente.
- A reabertura da economia após a pandemia de Covid-19 e a normalização das cadeias produtivas fizeram explodir o preço das commodities em 2022. Isso ajudou a arrecadação do país, que é grande exportador de soja, minérios e petróleo.
- A inflação em 2022 também foi mais alta, o que eleva a arrecadação porque aumenta a fatia de impostos no preço de itens consumidos pela população.
- Por fim, Bolsonaro ainda se beneficiou de uma antecipação de receitas com dividendos de estatais, que melhoraram pontualmente o caixa da União.
E mais: na tentativa de se reeleger, Bolsonaro fez um pacote de impulsos à economia, furando o teto de gastos. Entram os vouchers a taxistas e caminhoneiros, o ajuste do Auxílio Brasil e o teto do ICMS para combustíveis — esse que seria compensado apenas no ano seguinte.
Ao assumir o governo, Lula precisou gastar capital político antes mesmo de assumir para corrigir o Orçamento da União, que não tinha destinado recursos mínimos para o funcionamento do Estado. A PEC da Transição abriu os espaços, mas também gerou ampliação expressiva dos gastos no ano.
Aumento de gasto é um trauma dos agentes financeiros com governos do PT, e houve um estado de alerta quando a PEC foi aprovada. Para piorar a situação, Lula iniciou uma cruzada contra o mercado financeiro e, em seguida, contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.
A impressão dos agentes era de que Lula viraria as costas para os fundamentos ortodoxos e faria um governo “gastão”. Em março, o dólar esbarrava em R$ 5,40, e o Ibovespa perdeu os 100 mil pontos.
O clima só melhorou quando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou as bases do arcabouço fiscal. A nova regra limita o aumento de despesas ao crescimento das receitas do país, algo que afasta o temor do mercado de que políticas de ampliação de gastos causasse um endividamento desenfreado.
Em geral, um país que tem dívida mais alta — e com trajetória descontrolada — gera receio de investidores internacionais. As consequências são muitas: fuga de dólares e piora no câmbio, que causam piora da expectativa de inflação e demandam taxas de juros mais altas para atrair os recursos de volta.
Para Fernando Rocha, economista-chefe da JGP, o arcabouço é um primeiro passo, que ainda será monitorado pelos agentes: “creio que o mercado ainda dá o benefício da dúvida, porque muitos países ainda precisam de impulsos fiscais para combater os efeitos da Covid-19”.
Daqui dois ou três anos, se a questão não for endereçada, vai produzir um efeito bem negativo. O que tranquiliza é que o ministro Haddad parece compreender o problema. — Fernando Rocha, economista-chefe da JGP
As dúvidas sobre o arcabouço
Na visão dos analistas, o arcabouço fiscal cumpriu o papel de sinalizar que o governo vai perseguir uma disciplina com as contas públicas. O receio que permanece, porém, é a aversão do governo federal de depender exclusivamente do aumento de receita para cumprir as metas fiscais.
Haddad empilhou algumas vitórias no Congresso Nacional que o ajudarão na missão de, ao menos, reduzir o déficit público em 2024. A meta é zerá-lo.
Entre as ações para impulsionar as receitas, estão:
- a tributação de investimentos no exterior (offshores) e de fundos exclusivos;
- a retomada de regra que favorece o governo em julgamentos no Conselho Administrativo De Recursos Fiscais (Carf);
- a MP das subvenções do ICMS e;
- a taxação do mercado de apostas eletrônicas em jogos esportivos.
No apagar das luzes de 2023, o ministro ainda anunciou uma Medida Provisória contra o chamado “gasto tributário”, com revisão de compensações de empresas e revisão de benefícios tributários. A medida tem pontos que foram mal recebidos, e podem criar algum ruído na relação que Haddad criou com o Congresso em 2023.
A grande crítica é de que o governo tem se mostrado avesso ao corte de gastos para complementar o ganho de receitas. A única iniciativa do tipo é um grupo de trabalho para revisar gastos públicos federais comandado pelo Ministério do Planejamento, que foca na ineficiência de despesas.
O mercado acha pouco, e não acredita que será possível zerar o déficit em 2024. A própria Tendências Consultoria espera algo como 0,8% do PIB negativo para o ano, algo como R$ 90 bilhões.
“Muitos pontos dessa agenda fazem sentido e corrigem distorções antigas. Mas parte das medidas batem nesse Congresso que não está alinhado com essa pauta e voltam. A conta não fecha”, diz a economista Alessandra Ribeiro.
Para Fernando Rocha, da JGP, o governo tem tido altos e baixos na condução fiscal. Se, por um lado, é positiva a preocupação com a questão, o especialista critica o pedido do governo para que fosse inserido na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) um limite para contingenciamento que, na prática, evita um corte de cerca de R$ 30 bilhões em despesas no próximo ano.
O ideal seria valer o que está no arcabouço, doa a quem doer. Quando se abrem exceções assim, o compromisso acaba fragilizado. — Fernando Rocha, economista-chefe da JGP
Rocha explica que o principal fator para manter a credibilidade do arcabouço é o empenho em manter as metas e a sinalização à frente, inclusive com os objetivos de gasto alinhados a uma maior eficiência da economia.
“Se o governo se limitar ao aumento de receita para custear o gasto, acaba onerando o setor produtivo, diminui o potencial de crescimento e a capacidade de poupança da economia”, afirma.
Nova fase da reforma tributária
Ao lado do arcabouço fiscal, a maior vitória da equipe econômica em 2023 foi a aprovação da reforma tributária. O texto foi discutido durante 30 anos por sucessivos governos e dentro do governo, sem nunca ter saído do papel.
Em resumo, a PEC transforma cinco tributos em apenas dois Impostos sobre Valor Agregado (IVAs) — um gerenciado pela União, e outro com gestão compartilhada entre estados e municípios. O sistema simplifica o recolhimento e pagamento de impostos, e dá eficiência sem precedentes ao sistema. (Entenda aqui a reforma em 7 pontos)
O Brasil amadureceu, sabe que precisava enfrentar essa agenda que é a mais importante das reformas porque organiza o sistema produtivo, coloca o Brasil em compasso com o que tem de mais moderno no mundo.— Fernando Haddad, ministro da Fazenda
Mas a reforma não terminou, e está dividida em duas novas fases:
- A reforma aprovada trata do consumo e foi instaurada apenas em bases gerais. Em 2024, uma lei complementar dará a definição ao texto. Serão decididos todos os detalhes, como a alíquota geral do IVA, quais itens estarão isentos, quais integrarão o Imposto Seletivo etc.
- Terá início o desdobramento da reforma tributária sobre a renda. O governo ainda não divulgou a proposta, mas deve atacar lucros e dividendos de empresas, além de Imposto de Renda das pessoas físicas e jurídicas.
A reforma do IR é uma das diretrizes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tem declarado que vai colocar o “pobre no orçamento” e o “rico no imposto de renda”. Segundo especialistas, essa será uma oportunidade corrigir distorções e promover mais justiça no sistema de impostos brasileiro.
As perspectivas, com um PIB em desaceleração
Apesar de um resultado surpreendente no primeiro semestre, o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil cresceu apenas 0,1% no terceiro trimestre de 2023. É uma marca de que a desaceleração da economia está chegando.
O governo Lula tem um claro desafio para 2024, que é sustentar uma economia em baixa sem ceder à tentação de um impulso por meio do gasto público. O presidente deu vários sinais de que essa seria sua vontade ao longo do ano passado, mas Haddad sempre veio a público para reforçar o compromisso com a agenda de seu ministério.
De acordo com Lucas de Aragão, cientista político e sócio da Arko Advice, essa dualidade entre Lula e Haddad deve seguir neste ano, mas os agentes econômicos perceberam que existe uma frente de diálogo com o ministro que é “mais pragmática e mais racional”.
Investidores de mais longo prazo estão ficando mais vacinados com a política brasileira, percebendo que nem tudo que é prometido vira realidade. Hoje, o Brasil tem um poder muito fragmentado, muito compartilhado. Ninguém manda sozinho. — Lucas de Aragão, cientista político e sócio da Arko Advice
Aragão afirma ainda que o primeiro ano de Lula teve “pouca qualidade” na articulação política, em uma relação confusa com o Congresso Nacional. E acrescenta que os quadros mais tradicionais do PT demoraram a entender que a dinâmica entre a Presidência e os parlamentares mudou.
Ajustar esse trânsito deve ser uma das ações para o próximo ano, já que a agenda econômica fica mais complexa daqui em diante. Isso porque o arcabouço fiscal era absolutamente necessário, e uma reforma tributária sobre o consumo era um assunto mais amadurecido da agenda.
O analista destaca que os próximos passos de Haddad para cumprir as metas do arcabouço fiscal, por exemplo, devem ter mais resistência do Congresso. E, para além do que já foi sinalizado, não se sabe quais planos extras estão sendo estudados pelo governo para equalizar a situação.
“A crise fiscal e a solução proposta pelo arcabouço não estão equalizadas na cabeça do mercado financeiro. O investidor vê muita oportunidade no Brasil, mas ainda somos um país politicamente imprevisível”, diz.
O Brasil não precisa ser ótimo para continuar atraindo o interesse do mercado, mas precisa fazer o ‘dever de casa’ e passar de ano. — Lucas de Aragão, cientista político e sócio da Arko Advice
Para Alessandra Ribeiro, da Tendências Consultoria, há o desafio extra de uma desaceleração da economia global. Por aqui, o Banco Central iniciou um ciclo de cortes das taxas de juros, mas em economias desenvolvidas ainda estão em manutenção ou subida.
E os efeitos de juros demoram a aparecer. Alessandra ressalta que os resultados da atividade econômica no segundo semestre já mostram sinais de impacto em segmentos mais sensíveis à política monetária. E a situação deve piorar até meados de 2024, para só depois melhorar com os cortes da Selic.
“Ainda leva um tempo para vermos a indústria e a construção civil com comportamento melhor. Ano que vem terá um PIB com dinâmica diferente deste ano, em que se destacaram a agropecuária e os serviços”, afirma.
“Até aqui, tivemos uma economia mundial também mais resiliente do que se imaginava, com EUA crescendo acima do esperado, PIB da zona do euro também melhor. Com juros altos, esse cenário pode mudar em 2024.”
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